Carinho Roubado (em
memória da minha avó)
Aberto o portão metálico,
entrávamos e víamos a laranjeira no pequeno espaço ajardinado, antes de chegar
à porta da casa propriamente dita. A partir do portão, nos dias de bom tempo,
ou só depois de passar pela laranjeira, não dias menos convidativos, podíamos
ver, por vezes só ouvir, as vozes dos avós.
Não sendo já propriamente
novos nem de perfeita saúde, estavam sempre prontos a partilhar connosco o seu
carinho, calor humano e boa disposição. Mesmo contra as adversidades da vida e
da idade, havia amor para todos os filhos, netos e bisnetos. O carinho era uma
constante para todos os que faziam a sua visita.
Partilha de histórias,
bons momentos e afecto. Era este o ambiente com que os avós nos recebiam, ainda
que a vida pudesse nos lhes estar a sorrir da melhor maneira.
Anos atrás de anos, foi
esta a realidade, uma parte da vida tão simples, trivial mas, ainda assim,
agora vejo com mais claridade, tão valiosa. Como
em tanta coisa na vida, por vezes é do mais singelo que se extrai a maior
satisfação.
O tempo passa, a idade
avança e o relógio de areia que encerra em si as partículas da nossa existência
mantém-se em permanente movimento. Até que pára. Para sempre. Os grãos jazem no
fundo, inertes. O trabalho das Parcas é dado por terminado.
A avó falece subitamente.
A alegria passa a ser coisa de outrora. O carinho é roubado sem aviso,
cruelmente. Mantém-se apenas na memória e no coração dos que o experienciaram.
Dos avós, fica o avô, a
quem a companhia de uma vida foi furtada, de maneira imprevista, não sabemos se
pela idade, pela doença, por obra de Deus ou do Destino. Seja qual for o
responsável, a verdade é que parte do carinho foi usurpado, para nunca mais ser
restituída.
Resta manter o que
sobrou, recompôr as peças, aprendendo a viver o presente de outra forma, com a
sensação de falta que se instalou.
Sacrobosco
(texto publicado originalmente na jornal Nefelim, nº 14, de Maio de 2016)